Transtornos na corporação

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Cícero Pena reconhece de longe um funcionário em depressão. Ele mesmo passou por isso quando recebeu a primeira promoção e teve de administrar uma sobrecarga de trabalho combinada com um elevado nível de estresse. Não demorou muito e, além da depressão, chegou a síndrome do pânico. Pena passou mais de quatro anos se tratando. Foi um período duro durante o qual ele amadureceu duas ideias que hoje, como vice-presidente de Recursos Humanos da Algar, ele aplica com rigor: 1. Nunca negligenciar a queda de rendimento de algum colaborador; 2. Deixar bem claro a todos os funcionários da companhia que, em caso de qualquer transtorno, há saídas bem melhores do que se esconder ou tentar disfarçar.
Embora as lideranças na Algar sejam treinadas para localizar quem precisa de ajuda antes que o time inteiro seja contaminado, os colaboradores sabem que ninguém vai perder o emprego se isso acontecer. Pena diz que o clima organizacional da empresa passa por revisões periódicas e que o bem-estar físico, psicológico, espiritual e social de cada colaborador é alvo de constante atenção. “É possível obter lucro e resultados sem abandonar o ser humano”, diz. “Demitir nem sempre é a melhor solução; custa caro e não resolve.”

Transtornos emocionais ou alterações mentais raramente merecem qualquer comentário dentro das empresas – menos ainda são reconhecidos como doença que, como qualquer outra, deveria ser tratada. Quando a situação foge ao controle do gestor, a providência mais comum é antecipar as férias na crença de que a questão vai se resolver. Mariá Giuliese, diretora da Lens Minarelli e consultora na área de redirecionamento de carreira, observa que nem quando está visivelmente estressado, com sobrepeso, nervoso, alterado, o funcionário tem direito ao afastamento. As leis não reconhecem transtorno mental como doença. “Mas os transtornos podem ser uma questão provocada pelo ambiente de trabalho”, diz Mariá. É compreensível.

Insegurança

O universo corporativo impõe metas rígidas e o funcionário sofre pressão de todos os lados. Aquisições, fusões, mudança de cultura a partir de novas ordens e novas chefias geram sofrimento psíquico, insegurança e exigem uma adaptação que nem todos assimilam. E a demissão passa a rondar. Demissões acontecem, mas em muitos casos fazem mal para quem sai, para quem fica e ainda interferem na produtividade. “Nenhuma empresa admite que pode gerar doença e ninguém que adoece admite que adoeceu na empresa”, diz Mariá.

Ambiente corporativo e saúde pública têm tudo a ver. Até por uma questão econômica, se o assunto transtorno fosse observado com a atenção que merece todos sairiam lucrando: as empresas, porque tratariam do funcionário em vez gastar com demissões; e o serviço público de saúde, que não teria de bancar aposentadorias desnecessárias. Faz sentido. Quase 30% das pessoas que moram na região metropolitana de São Paulo têm transtornos mentais. Traduzindo: numa reunião com dez pessoas, pelo menos três têm algum transtorno – inclusive aquele chefe que todo mundo acha implicante e está sempre de mau humor. Esse dado faz parte de uma pesquisa bem recente liderada por Laura Andrade, do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas e reúne entrevistas com mais de 5 mil pessoas que moram em São Paulo.

Tipos de transtornos

O estudo apresenta dados epidemiológicos de 24 países. Em São Paulo, a prevalência dos transtornos de humor foi a mais alta entre todas as áreas pesquisadas.Transtornos de ansiedade são os mais comuns (19,9%), seguidos por transtornos de humor (11%), controle de impulsos (4,3%) e transtornos por consumo de substâncias (3,6%). Transtornos afetivos e ansiedade, portanto, podem ser responsáveis pela maior parte das incapacitações nas empresas. Mas a boa notícia é que todos têm tratamento e a maior parte fica bem, segundo Laura Andrade. “O papel das empresas é encaminhar para tratamento.”

Essas incapacitações têm ligação direta com os hábitos nas grandes cidades, com o trabalho em lugares opressivos, deslocamentos difíceis, violência urbana. Mais de 50% das pessoas entrevistadas em São Paulo para a pesquisa de Laura Andrade revelaram que a violência na cidade afeta sua maneira de viver, seu comportamento, seus hábitos sociais. Embora todas as pessoas sejam atingidas pelas dificuldades que enfrentam, algumas são mais vulneráveis e sofrem um impacto maior. Há pessoas com mais resiliência, que conseguem superar, mas o que fazer com aquelas que são mais afetadas? “A pesquisa revela uma grande incidência de pessoas que não podem ser ignoradas”, diz Laura. Para complicar, ainda há o estigma, uma via de duas mãos, em que o portador do transtorno não revela por receio de ser discriminado; e o ambiente corporativo segrega e descarta por falta de conhecimento da questão. “Só com divulgação e conscientização será possível tratar e recuperar o funcionário, que na grande maioria das vezes, vale a pena.”

Bipolaridade

Diagnóstico, tratamento adequado e medicação certa são o caminho indicado para os portadores de transtornos mentais. No caso da bipolaridade, que afeta entre 4% e 5% da população em geral, quem tem coragem suficiente para revelar tal condição, quando a informação não existe e o preconceito impede o conhecimento? Ainda mais por ser uma questão em que cada paciente porta o transtorno de um jeito diferente? “Bipolar só revela que é bipolar se está bem, quando se sente estabilizado”, diz Doris Moreno, pesquisadora do Programa Transtornos Afetivos do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. Doris acredita que se a questão ganhasse mais visibilidade, se celebridades portadoras do transtorno bipolar revelassem publicamente sua condição, certamente as pessoas entenderiam e aceitariam com complacência – da mesma forma como aconteceu com a depressão e a síndrome do pânico, hoje encaradas e compreendidas como questões tratáveis e com bons resultados de qualidade de vida.

Em geral as empresas não entendem o que é o transtorno da bipolaridade e, exatamente por não entender, os funcionários também não aceitam. Muitos RHs não hesitariam um minuto em mandar para o cesto de lixo a ficha de um portador de transtorno bipolar, ainda que se revelasse medicado, estabilizado. “Bem cuidados, os portadores de bipolaridade ficam muito próximos de 100%”, diz Doris. Empresas precisam saber que transtornos afetivos devem ser tratados e que portadores podem levar uma vida equilibrada. “Se a questão for abordada de forma aberta, as relações de trabalho vão melhorar e as possibilidades dos pacientes, também”, diz Doris.

Reconhecer a doença

Depressão, síndrome do pânico, transtorno bipolar desestabilizado são situações que os gerentes de RH precisam aprender a reconhecer. Entre as doenças que mais afastam profissionais de seus postos metade está ligada a causas psiquiátricas, segundo o psiquiatra Daniel Barros. O grande desafio do RH é o funcionário com depressão. Não é uma situação que se revela de repente. O processo de adoecimento é lento. Ele vai trabalhar, mas a produtividade diminui; ele briga por qualquer motivo, se irrita muito e vai mais ao médico. “Essas pessoas têm duas vezes mais incapacidade, faltam mais, utilizam mais o plano de saúde, saem mais cedo, são menos produtivas”, enumera Barros. Para a empresa, o impacto também é significativo: perda de oportunidades, decréscimo da produção e um time à beira da contaminação.

#L# Algumas empresas andam colocando na balança essas situações e já constatam que tratar o funcionário é mais econômico que demitir ou antecipar as férias. A melhor maneira de administrar questões que envolvem casos psiquiátricos dentro da corporação é treinar o pessoal de recursos humanos. “A arma mais eficiente contra o preconceito é a informação”, acredita Barros. “Se todos se convencessem de que psiquiatra não é médico de louco, o tema dos transtornos mentais poderia bem ser incluído naquelas semanas em que as empresas abordam os temas de segurança”, sugere.

Acidente de trabalho

Pode ser um bom começo introduzir questões entre as lideranças quando a discussão for acidentes do trabalho. É uma forma de informar e orientar na identificação dos sintomas para que todos se ajudem e ajudem quem precisa. Para o funcionário em depressão de nada adiantam campanhas de motivação, na opinião do psiquiatra. “Depressão é caso de remédio mesmo, além de tratamento multidisciplinar com associação de terapia.” Incluir a saúde mental na semana de segurança pode ajudar a desfazer o preconceito de quem desconhece a questão e que, por isso mesmo, ironiza o companheiro em crise de esgotamento. Ou até informar aquele outro que não é uma boa prática comprar briga com quem revela uma agressividade fora de controle. Recursos Humanos poderiam se preparar para identificar funcionários em sofrimento. Questão de informação e treinamento. Dar visibilidade a esses temas permitirá ao RH entender e perceber melhor quem está em crise, abordar o assunto com segurança e encaminhar para tratamento. É assim que as corporações retêm os bons funcionários e se destacam da concorrência.

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